Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. O dito popular que naturaliza a violência entre casais ainda parece persistir, como mostram os dados da quinta edição da pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, conduzida pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Segundo o levantamento, 9 em cada 10 das 21,4 milhões de mulheres brasileiras que relataram algum tipo de violência nos últimos 12 meses afirmam que as agressões foram testemunhadas por amigos ou conhecidos (47,3%), pelos filhos (27%), outros parentes (12,4%) ou por pessoas desconhecidas (7,7%).
O estudo destaca que 67% das agressões relatadas foram cometidas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima. Desde a primeira edição da pesquisa, em 2017, a participação de maridos, namorados ou companheiros nos casos de agressão subiu de 19,4% para 40%, considerando os dados de 2025. “Foi a primeira vez que perguntamos sobre testemunhas da violência sofrida pela mulher. O resultado nos surpreendeu e mostra o tamanho do desafio”, declarou Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum.
A pesquisa ouviu 1.040 mulheres a partir de 16 anos, residentes em 126 municípios de pequeno, médio e grande porte no Brasil, de 10 a 14 de fevereiro de 2025. Dessas, 793 participantes responderam especificamente perguntas relacionadas à vitimização. A margem de erro do levantamento é de 3 pontos percentuais, para mais ou para menos. Entre as mulheres que relataram episódios de violência recente, 37,5% foram alvo de insultos, humilhações e xingamentos (31,4%), batidas, empurrões ou chutes (16,9%), ameaças de violência física (16,1%), perseguições ou situações de amedrontamento (16,1%), ofensa sexual ou tentativa de relação forçada (10,4%), objeto atirado que provocou lesão (8,9%), espancamento ou tentativa de estrangulamento (7,8%), ameaça com faca ou arma de fogo (6,4%) e tiro ou esfaqueamento (1,4%).
“Tendo a crer que essa ideia de que é preciso meter a colher quando uma mulher sofre violência ainda está limitada à ocorrência da agressão física. Se não tem um olho roxo ou uma marca muito evidente da violência, as pessoas tendem a ser tolerantes com o agressor”, opinou Samira Bueno. Para a socióloga Wânia Pasinato, consultora especializada em violência contra a mulher, identificar e agir precocemente nesses casos pode evitar a evolução para feminicídios. O ano de 2024 registrou 1.459 vítimas de feminicídio no Brasil, o maior número da série histórica.
Pasinato enfatiza que testemunhas da violência podem intervir quando julgarem estar em segurança, além de ligar para a polícia ou recorrer a canais oficiais de denúncia, como o número 180. “É muito importante apoiar a mulher que está vivendo a situação de violência e auxiliá-la a procurar ajuda, acompanhando-a até a delegacia ou o serviço médico”, afirmou. No entanto, os dados do levantamento mostram que 47,4% das mulheres agredidas no último ano não buscaram ajuda nem responsabilização. Cerca de 19,2% recorreram à família, 15,2% buscaram amigos, 14,2% foram a Delegacias da Mulher e 6% procuraram apoio em igrejas.
Pasinato também lembrou que testemunhas podem registrar ocorrências em delegacias, com base na Lei Maria da Penha, e obter as mesmas medidas protetivas disponíveis para as vítimas. “As pessoas têm medo de testemunhar porque não sabem como serão recebidas nem quais são os seus direitos nesses casos”, destacou. Ela reforçou que testemunhas têm direito a atendimento seguro e sem contato com o agressor, além de medidas de proteção que garantam integridade física e emocional.
A médica Maria Beatriz Linhares, especialista em neurociências da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, apontou que a violência interpessoal e intrafamiliar afeta não apenas a mulher, mas também as crianças. Segundo a pesquisa, em 27% dos casos, os filhos da vítima presenciaram os episódios de agressão. Linhares explicou que isso pode impactar gravemente o desenvolvimento das crianças, repercutindo na sociedade. “Ser testemunha de violência é sofrer uma violência”, afirmou. Para a médica, a convivência com tais episódios ensina modelos de resolução de conflitos com base em agressividade, perpetuando o ciclo de violência.
Linhares também ressaltou a urgência de enfrentar o problema de forma ampla e integrada. “Os dados estão aí. Problemas complexos não têm solução simples. Ela [a violência] é intersetorial e cada um tem que fazer sua lição de casa. A mulher tem que ser protegida, a criança tem que ser protegida. E só assim podemos mudar o curso da história e os fatores de risco”, concluiu.